A capa de 22 de agosto de 2016 da revista People. Time Inc.
A foto que acompanha a recente reportagem de capa da revista People sobre JonBenét Ramsey mostra uma coroa de cachos loiros, uma fileira de dentes de leite reluzentes e um par de olhos grandes olhando fixamente por trás de cílios escuros grossos.
Aos 6 anos, JonBenét não só havia ganho o corte de cabelo, roupas e maquiagem de uma mulher adulta, mas também havia sido ensinada a ter a imobilidade de uma. Ela não é registrada em movimento, como geralmente crianças o são em fotografias. Ela parece alheia a qualquer desejo ou distração que a impeça de permanecer imóvel enquanto sua imagem é capturada. Ela nos deixa olhar para ela.
Pelos últimos 20 anos, o público americano nunca deixou de olhar para JonBenét Ramsey e nunca parou de clamar por justiça em nome dela: em especiais e filmes na TV em horário nobre, em best-sellers de não ficção sobre o crime e artigos furiosos publicados independentemente, em comunidades on-line formadas nos primórdios da internet discada e que ainda prosperam e nas matérias de várias páginas em revistas e tabloides. Todos eles incitam os leitores a entrarem em luto ano após ano, como se fosse sempre um novo ataque contra os EUA, uma DESCOBERTA SINISTRA, uma HISTÓRIA SECRETA, o ASSASSINATO DE UMA BELA MENININHA.
Em 1996, os americanos ainda estavam atordoados pelo julgamento de Susan Smith, uma mulher da Carolina do Sul que havia sido presa em julho de 1995 acusada de afogar seus filhos pequenos. O caso de O.J. Simpson também ainda era recente. O julgamento de Simpson havia aberto o caminho para o ciclo de notícias de 24 horas e provou que os telespectadores aparentemente assistiriam a qualquer coisa, não importa o quão entediante ou inconclusiva ela fosse, desde que fosse relacionada a um crime que os fascinasse.
Apesar da entrevista no Dr. Phil em si ter feito notícia, ela simplesmente requentou informações que já era públicas há muito tempo.
A mesma semana também viu a estreia da série da A&E O Assassinato de JonBenét: A Verdade Revelada e Quem Matou JonBenét no Dateline, apesar desses especiais serem apenas o prelúdio de uma série em duas partes da CBS chamada O Caso de: JonBenét Ramsey, que foi transmitida em 18 e 19 de setembro.
Mesmo assim, até agora, apesar de painéis de investigação terem sido montados e dos telespectadores continuarem a esperar por uma reviravolta no caso, nenhuma das nossas visitas de retorno a essa história trouxeram o tipo de informação que a tornariam menos paradoxal.
Revisitar crimes tem sido há muito tempo uma das bases da mídia americana e, pelo lado positivo, pode oferecer ao público uma nova compreensão ou mesmo um desfecho.
No entanto, mesmo quando estreou nos noticiários, o assassinato de JonBenét Ramsey nunca foi apresentado ao público em uma narrativa única e coerente. As pistas às quais o público se agarrava vinham de boatos e tabloides. O que era fato em um dia poderia ser provado mentira no dia seguinte, e geralmente era isso o que acontecia. Os suspeitos do caso frequentemente sofriam menos com a pressão da polícia do que com a atenção do público.
A mãe de JonBenét, Patsy Ramsey, nunca foi oficialmente indiciada ou julgada, mas, para muitos telespectadores, a culpa dela nunca esteve em dúvida. A feminilidade precoce de JonBenét só agravava a fúria dos tabloides, assim como a ideia arraigada de que seu assassinato estava de alguma forma inexoravelmente ligado à sua cidadania parcial na terra da feminilidade adulta — e à mulher que alguns argumentavam tê-la empurrado para lá. Tal história combinou o sensacionalismo com a inocência de uma forma que forçou os americanos a imaginarem o inimaginável.
O pedido de resgate. The Washington Post / Getty Images
Ouça com atenção!, instruía o bilhete. Somos um grupo de indivíduos que representam uma pequena facção estrangeira (…) Neste momento, temos sua filha em nossa posse. Ela está a salvo e ilesa, e se você quiser que ela veja 1997, você precisa seguir nossas instruções ao pé da letra.
JonBenét Ramsey tinha 6 anos quando foi assassinada em sua casa em Boulder, no Estado do Colorado (EUA), na noite de Natal em 1996.
Patsy Ramsey e seu marido, John, alegaram ter dormido a noite toda sem interrupções. Patsy disse à polícia que havia acordado primeiro e que ainda não havia olhado o quarto de sua filha quando encontrou o pedido de resgate. “E então”, conforme o escritor de não-ficção criminal Carlton Smith mais tarde colocaria em seu livro A Morte de uma Princesinha, “em um desses momentos nos quais o tempo parece parar, o coração de Patsy Paugh Ramsey, ex-Miss Virgínia Ocidental, prestes a completar quarenta anos, a esposa feliz de um homem de negócios bem-sucedido, foi partido por um raio de medo aterrador e impensável, o primeiro passo de uma estrada que mudaria sua vida para sempre”.
O bilhete de resgate encontrado no lar dos Ramsey era chocante não apenas por seus termos, mas por sua especificidade. Ele exigia 188 mil dólares em troca da vida de JonBenét — a mesma quantia do bônus salarial que John Ramsey havia recebido recentemente como presidente e diretor-executivo da Access Graphics, a subsidiária bilionária da Lockheed Martin. O bilhete também era destinado apenas a John.
Qualquer desvio das minhas instruções irá resultar na execução imediata de sua filha, continuava o bilhete de resgate. Os restos mortais dela para um enterro digno também lhe serão negados (…) Você tem 99% de chance de matar sua filha se tentar ser mais esperto que nós. Siga nossas instruções e você terá 100% de chance de tê-la de volta. Você e sua família estão sob vigilância constante, assim como as autoridades. Não tente ser espertinho, John (…) Não nos subestime, John (…) Só depende de você agora, John!
Vitória!
S.B.T.C.
Patsy então ligou para a polícia, que vasculhou a casa dos Ramsey, mas não encontrou nada. À tarde, os policiais tinham tanta certeza que a cena não forneceria mais evidências que pediram a John que desse mais uma última olhada na casa, para ver se ele havia notado alguma coisa fora do comum.
Com um amigo, Fleet White, John então foi até o porão e a uma salinha pequena e sem janelas que ficava ali, que os Ramseys chamavam de adega. Foi aí que John Ramsey encontrou o cadáver de JonBenét. Ela havia sofrido traumatismo craniano. Ela havia sido estrangulada. Suas mãos estavam amarradas. Sua boca havia sido coberta com fita adesiva. E ela havia sido enrolada em um lençol branco.
John Ramsey tirou a fita adesiva da boca de sua filha e carregou seu corpo escada acima. A polícia disse a John que informasse sua esposa sobre a morte, e ele deitou o corpo da criança junto à árvore de Natal da família.
A imagem de JonBenét Ramsey estava estampada em dezenas de fichários de investigação policial. Ray Ng / Getty Images
Após as primeiras notícias sobre o assassinato, as teorias da polícia e da imprensa sobre o autor do pedido de resgate se proliferaram: Patsy Ramsey acordou para encontrar o bilhete, ou escreveu um, ou sentou-se ao lado do marido enquanto ele escrevia um, ou acordou para encontrar um pedido de resgate escrito por seu marido ou talvez por seu filho de 9 anos, Burke?
A imagem de JonBenét Ramsey estava estampada em dezenas de fichários de investigação policial. Ray Ng / Getty Images
Após as primeiras notícias sobre o assassinato, as teorias da polícia e da imprensa sobre o autor do pedido de resgate se proliferaram: Patsy Ramsey acordou para encontrar o bilhete, ou escreveu um, ou sentou-se ao lado do marido enquanto ele escrevia um, ou acordou para encontrar um pedido de resgate escrito por seu marido ou talvez por seu filho de 9 anos, Burke?
“Alguns conhecidos se perguntam se toda a atenção dada à JonBenét, mesmo que inocente e bem-intencionada, não deixou Burke se sentindo de lado”, escreveu Bill Hewitt na revista People. Relatar isso culpabilizava os outros membros da família e também o relacionamento de Patsy com sua filha: Hewitt também citou um fotógrafo que trabalhou com JonBenét e que lembrou de Patsy ter dito: “Ela não é só a minha filha, ela é a minha melhor amiga”. Até o detetive da polícia de Boulder, Steve Thomas, argumentava que era possível que Patsy tivesse perdido o controle de seu temperamento ao castigar JonBenét por ter feito xixi na cama.
Ainda existem sites e fóruns dedicados a discutir os detalhes do assassinato de JonBenét Ramsey. Comentaristas debatem e revisitam tudo, desde a relevância dos pôsteres de filmes no porão dos Ramseys (“acho que A Força do Destino deve ser mais do gosto da Patsy”) ao tamanho e a marca da calcinha que JonBenét estava vestindo quando foi assassinada.
Não demorou para os detetives amadores irem além das evidências presentes. Afinal, os peritos não conseguiram afirmar se a caligrafia no bilhete do resgate combinava com a de Patsy Ramsey, ou se JonBenét havia sido estuprada no passado ou na noite do assassinato, ou mesmo se o assassinato havia sido cometido por um intruso ou por algum dos moradores da casa. Muito era possível, mas pouco era sabido. Como resultado, quase todas as teorias sobre o assassinato tiveram que, uma hora ou outra, fazer uso da pura especulação.
Frequentemente, para aqueles que continuam a debater o caso, isso significa olhar para os suspeitos de sempre, significa analisar fotos e vídeos da família Ramsey, significa perguntar: Eles estavam realmente sofrendo? Eles eram realmente monstros? E eu não deveria ser capaz de distinguir isso somente olhando para eles?
A Enciclopédia do Caso JonBenét Ramsey, site que oferece um banco de dados exaustivamente alimentado com evidências, testemunhos e fóruns onde visitantes podem discutir seus próprios palpites, tem uma página inteira reservada a teorias sobre como e porque Patsy Ramsey matou sua filha.
Há a “Teoria da Fúria pelo Xixi na Cama”, endossada pela polícia de Boulder, mas também a “Teoria da Fúria Conjugal”, “John Pego no Ato”, “Abuso Sexual por Patsy”, “Síndrome de Munchausen por Transferência”, “Círculo de Pornografia Infantil” e “Sacrifício Ritual”.
Levando em conta esse agregado, a especulação parece, finalmente, menos sobre a própria Patsy Ramsey e mais sobre a necessidade das pessoas de criar uma lista de todas as situações, não importa o quão bizarras sejam, que poderiam levar uma mãe a matar sua própria filha de uma forma tão brutal. Uma história na qual a vítima mais inocente imaginável seja presa da mais sombria das forças ainda é melhor do que história nenhuma: por mais sinistra que seja, ela aponta o dedo para uma vilã real. Quanto pior a morte de JonBenét for, maior é o contraste entre sua inocência e a crueldade de sua morte, maior será a recompensa quando o assassino for pego e a justiça for feita, no final da história há muito esperado.
Nos dias seguintes ao assassinato de sua filha, Patsy Ramsey estava quase sempre sedada, às vezes ao ponto do delírio. Em entrevistas daquela época, ela fala pausadamente, com a voz fraca. O simples ato de ordenar uma frase parece exigir toda sua força de vontade. Ela parece simplesmente destruída.
Entrevistados por repórteres que logo afluíram para a cidade, os moradores de Boulder se lembravam de uma mulher bem diferente. Eles descreviam Patsy Ramsey como uma mãe glamourosa e cheia de energia que, mesmo fazendo quimioterapia, trabalhava voluntariamente na escola primária de seu filho e que parecia determinada a fazer de sua filha uma miss tão condecorada em concursos de beleza quanto ela própria havia sido no passado.
“Patsy era dinâmica”, contou Robert Elmore, o pároco da igreja que os Ramseys frequentavam, ao escritor Lawrence Schiller. “Ela era uma pessoa proativa com ideias bem definidas. E ela tinha esse anjo vivo. JonBenét era um anjo de verdade. Não me lembro de ter visto uma criança tão linda antes”.
“Por que ela não pôde crescer?”, teria perguntando Patsy a Kristine Griffin, aluna do ensino médio que competia no circuito de concursos de beleza e que treinava JonBenét, um dia depois do assassinato. “Tudo o que Jonnie B queria era ganhar uma coroa como a sua.”
Ainda assim, houve quem questionou o quão interessada JonBenét realmente estava no passatempo que sua mãe havia escolhido para ela. Até mesmo Griffin já havia notado que JonBenét costumava ceder seus prêmios para as participantes que terminavam no concurso de mãos vazias. Se ela não era forçada a participar desses concursos de beleza, também não parecia vê-los como mais do que um jeito de se divertir, apesar dos títulos que ela rapidamente acumulava: Little Miss Sunburst, Little Miss Merry Christmas, Little Miss Colorado, National Tiny Miss Beauty.
Para Patsy, que foi coroada Miss Virgínia Ocidental em 1977 e competiu como Miss EUA, a participação de JonBenét em concursos de beleza poderia ter sido um jeito de retornar a um mundo que ela conhecia melhor do que qualquer uma — ou pelo menos, ela pensava que conhecia.
Em A Morte da Inocência, as memórias das quais ela foi coautora com seu marido, Patsy ternamente se recorda de como, quando JonBenét se preparava para o concurso Little Miss Sunburst em agosto de 1996 — no mês em que ela fez 6 anos de idade — Patsy pediu à sua mãe e à sua irmã que a ajudassem com uma fantasia. Patsy escreve que elas acharam “uma capa de cetim branco com uma gola que poderia ser transformada em uma fantasia ao estilo das Folias de Ziegfeld, lembrando uma que eu havia vestido no concurso de Miss Virgínia Ocidental uns vinte anos antes. Tal mãe, tal filha”.
Frequentemente, para aqueles que continuam a debater o caso, isso significa olhar para os suspeitos de sempre, significa analisar fotos e vídeos da família Ramsey, significa perguntar: Eles estavam realmente sofrendo? Eles eram realmente monstros? E eu não deveria ser capaz de distinguir isso somente olhando para eles?
A Enciclopédia do Caso JonBenét Ramsey, site que oferece um banco de dados exaustivamente alimentado com evidências, testemunhos e fóruns onde visitantes podem discutir seus próprios palpites, tem uma página inteira reservada a teorias sobre como e porque Patsy Ramsey matou sua filha.
Há a “Teoria da Fúria pelo Xixi na Cama”, endossada pela polícia de Boulder, mas também a “Teoria da Fúria Conjugal”, “John Pego no Ato”, “Abuso Sexual por Patsy”, “Síndrome de Munchausen por Transferência”, “Círculo de Pornografia Infantil” e “Sacrifício Ritual”.
Levando em conta esse agregado, a especulação parece, finalmente, menos sobre a própria Patsy Ramsey e mais sobre a necessidade das pessoas de criar uma lista de todas as situações, não importa o quão bizarras sejam, que poderiam levar uma mãe a matar sua própria filha de uma forma tão brutal. Uma história na qual a vítima mais inocente imaginável seja presa da mais sombria das forças ainda é melhor do que história nenhuma: por mais sinistra que seja, ela aponta o dedo para uma vilã real. Quanto pior a morte de JonBenét for, maior é o contraste entre sua inocência e a crueldade de sua morte, maior será a recompensa quando o assassino for pego e a justiça for feita, no final da história há muito esperado.
Nos dias seguintes ao assassinato de sua filha, Patsy Ramsey estava quase sempre sedada, às vezes ao ponto do delírio. Em entrevistas daquela época, ela fala pausadamente, com a voz fraca. O simples ato de ordenar uma frase parece exigir toda sua força de vontade. Ela parece simplesmente destruída.
Entrevistados por repórteres que logo afluíram para a cidade, os moradores de Boulder se lembravam de uma mulher bem diferente. Eles descreviam Patsy Ramsey como uma mãe glamourosa e cheia de energia que, mesmo fazendo quimioterapia, trabalhava voluntariamente na escola primária de seu filho e que parecia determinada a fazer de sua filha uma miss tão condecorada em concursos de beleza quanto ela própria havia sido no passado.
“Patsy era dinâmica”, contou Robert Elmore, o pároco da igreja que os Ramseys frequentavam, ao escritor Lawrence Schiller. “Ela era uma pessoa proativa com ideias bem definidas. E ela tinha esse anjo vivo. JonBenét era um anjo de verdade. Não me lembro de ter visto uma criança tão linda antes”.
“Por que ela não pôde crescer?”, teria perguntando Patsy a Kristine Griffin, aluna do ensino médio que competia no circuito de concursos de beleza e que treinava JonBenét, um dia depois do assassinato. “Tudo o que Jonnie B queria era ganhar uma coroa como a sua.”
Ainda assim, houve quem questionou o quão interessada JonBenét realmente estava no passatempo que sua mãe havia escolhido para ela. Até mesmo Griffin já havia notado que JonBenét costumava ceder seus prêmios para as participantes que terminavam no concurso de mãos vazias. Se ela não era forçada a participar desses concursos de beleza, também não parecia vê-los como mais do que um jeito de se divertir, apesar dos títulos que ela rapidamente acumulava: Little Miss Sunburst, Little Miss Merry Christmas, Little Miss Colorado, National Tiny Miss Beauty.
Para Patsy, que foi coroada Miss Virgínia Ocidental em 1977 e competiu como Miss EUA, a participação de JonBenét em concursos de beleza poderia ter sido um jeito de retornar a um mundo que ela conhecia melhor do que qualquer uma — ou pelo menos, ela pensava que conhecia.
Em A Morte da Inocência, as memórias das quais ela foi coautora com seu marido, Patsy ternamente se recorda de como, quando JonBenét se preparava para o concurso Little Miss Sunburst em agosto de 1996 — no mês em que ela fez 6 anos de idade — Patsy pediu à sua mãe e à sua irmã que a ajudassem com uma fantasia. Patsy escreve que elas acharam “uma capa de cetim branco com uma gola que poderia ser transformada em uma fantasia ao estilo das Folias de Ziegfeld, lembrando uma que eu havia vestido no concurso de Miss Virgínia Ocidental uns vinte anos antes. Tal mãe, tal filha”.
Dias após a morte de JonBenét, os organizadores de concursos de beleza infantis começaram a vender vídeos das performances dela aos seus afiliados. Em especial, as imagens de JonBenét no que Patsy chamou de fantasia das Folias de Ziegfeld cativaram os espectadores: o vídeo mostrava JonBenét fantasiada e apresentando uma coreografia provocativa que teria sido adequada para uma mulher jovem, mas que era inadequada para uma garotinha. Isso também criou uma narrativa ainda mais sensacionalista em torno do assassinato de JonBenét.
“Quando veio à tona que a criança havia sido miss em concursos de beleza”, disse na época Brian Cabell, da CNN, “a história ficou mais sexy”.
Foi nessa mesma época que tabloides começaram a levantar a hipótese de que JonBenét Ramsey poderia ter sido estuprada na noite do assassinato e talvez até mesmo por meses ou anos antes disso.
Uma edição de janeiro de 1997 da revista National Enquirer prometeu contar “A História Secreta” de “Como a Garotinha do Papai Realmente Morreu”, com a manchete acompanhada por uma foto em baixa resolução de JonBenét olhando fixamente para um vulto oculto, como se estivesse assustada. “Estamos descobrindo mais sobre o cordeirinho inocente que foi abatido”, prometia um especial do Hard Copy a seus leitores antes de passarem um clipe exclusivo da aparição de JonBenét no concurso Little Miss Charlevoix County.
A história não era uma campeã de audiência até deixar de ser sobre uma criança assassinada e passar a ser sobre uma menina-moça assassinada. Só então os repórteres dos tabloides convergiram para Boulder no que um jornalista descreveu como “estupro coletivo”; só aí a história passou de tragédia absurda a um teatro moralista.
Enraizada na fascinação duradoura do público pelas participações de JonBenét em concursos de beleza, estava a ideia de que seu assassinato estava inevitavelmente conectado à sua aparente feminilidade: que uma mulher era, inerentemente, ainda mais vulnerável do que uma criança.
As notícias que focavam no envolvimento de JonBenét em concursos de beleza — o que uma matéria de capa da Newsweek chamou de “O Estranho Mundo de JonBenét” — insinuavam que Patsy Ramsey havia empurrado sua filha para dentro de um mundo perigoso. E que ela deveria ter tido consciência disso.
Nos casos de mulheres brancas desaparecidas que o público americano conhece tão bem (Chandra Levy, Natalee Holloway e Brooke Wilberger, para citar algumas) e cuja influência na imaginação americana permanece intacta, é impossível fugir do simbolismo da luz contra as trevas. Ele está na manchete dos tabloides, nos comentários do detetive à imprensa, no noticiário noturno. A garota caminhou pela noite, adentrou a escuridão e então se foi. Ela cresceu só o bastante para deixar seu lar protegido e, assim que ela andou mundo faminto adentro, foi devorada. Essas são histórias aterrorizantes, mas nessas histórias existem regras: Fique onde você está e você não será ferida. No entanto, JonBenét Ramsey, jovem demais para entrar nesse mundo sombrio além da porta de sua casa, foi devorada pelas trevas mesmo assim. À medida que vídeos de suas performances em concursos de beleza eram reproduzidos em todos os canais, tornou-se difícil para os telespectadores não se perguntarem se Patsy Ramsey, ao transformar sua menininha em uma mulherzinha, havia convidado essas trevas para dentro de sua casa.
Desde o momento em que o assassinato de sua filha virou notícia em rede nacional, as atitudes de John e Patsy Ramsey só serviram para fazer com que eles parecessem mais suspeitos.
Em vez de esperarem que a polícia assumisse o controle sobre o caso, eles recorreram a seus advogados para aconselhamentos sobre seus direitos e sobre como fazer o possível para garantir que não dessem nenhuma declaração ou divulgassem qualquer evidência para a polícia que depois pudesse ser usada contra eles em um julgamento. Majoritariamente, aqueles que começaram a suspeitar dos Ramseys apontaram para esta estratégia como prova de sua culpa. Menos amplamente discutido foi o fato de que contratar um advogado no início de uma investigação que quase inevitavelmente apontaria você como um suspeito era, simplesmente, a única coisa sensata a se fazer.
John e Patsy Ramsey ainda tinham que dar um depoimento formal para a polícia enquanto se preparavam para transportar o corpo de JonBenét para o enterro em Atlanta. Enquanto os Ramseys planejavam o funeral de sua filha, John Eller, da Polícia de Boulder, teve a ideia que parecia a solução ideal: reter o corpo de JonBenét até que seus pais concordassem em depor. Não passou pela cabeça de Eller, talvez, que o bilhete de resgate que Patsy Ramsey encontrou em sua casa fazia a mesma ameaça. Qualquer desvio das minhas instruções irá resultar na execução imediata de sua filha. Os restos mortais dela para um enterro digno também lhe serão negados.
O corpo de JonBenét Ramsey foi finalmente liberado sem que seus pais tivessem que depor. Ela foi enterrada usando uma das suas coroas de miss.
A Polícia de Boulder dedicou todos seus recursos para solucionar o assassinato de JonBenét Ramsey, investindo em novas tecnologias, testes, uma força-tarefa e peritos que conseguiriam lidar com a atenção sem precedentes da mídia que o crime havia provocado.
Ainda assim, cada resposta que os investigadores descobriam parecia levá-los para cada vez mais fundo em um emaranhado de incertezas. Um perito disse que o corpo de JonBenét indicava abuso sexual prévio; outro disse o contrário. Havia vidro quebrado em uma das janelas do porão na noite do assassinato, mas não havia pegadas frescas na neve. “SBTC”, a sigla usada no fim do pedido de resgate poderia significar “Subic Bay”, a base naval onde John havia servido, ou poderia significar “Saved By The Cross” (“salva pela cruz”), uma referência à suposta crença de Patsy Ramsey de que a fé havia curado seu câncer de ovário, ou poderia significar outras mil coisas. Não havia evidências suficientes na cena do crime para indicar a presença de um intruso e não havia motivo suficiente concebível para explicar porque alguém de dentro da casa poderia ter cometido o assassinato.
Quando John e Patsy Ramsey apareceram na CNN no dia do Ano Novo em 1997, enfrentando suspeitas crescentes de serem os responsáveis pela morte de sua filha, o estado emocional deles à medida que respondiam às perguntas do entrevistador Brian Cabell foi mais analisado do que as respostas que eles deram.
“A polícia disse que não há assassino algum à solta”, disse Cabell. “Você acredita que tenha sido alguém de fora da sua casa?”
“Existe um assassino à solta”, disse Patsy. “Não sei quem é. Não sei se é ele ou ela. Mas se eu morasse em Boulder, eu diria a meus amigos para manter — mantenham seus filhos perto de vocês”. A voz de Patsy era frágil, baixa, chorosa. Mas ela olhou diretamente para a câmera ao sussurrar “Tem alguém à solta lá fora”.
“Essa criança era a coisa mais preciosa da minha vida”, disse Patsy Ramsey à polícia após consentir em dar um depoimento. “Parem de perder tempo me perguntando essas coisas e vamos achar a pessoa que fez isso.”
Mas não havia respostas. A polícia de Boulder testou todas as evidências que tinha e só encontrou resultados inconclusivos. Eles pediram ajuda ao FBI, mas os resultados do FBI não foram melhores. Aparentemente, todos os suspeitos fora da casa tinham um álibi incontestável. Havia pouco a se fazer além de suspeitar dos pais. A investigação continuou. A indignação do público cresceu.
“Vocês precisam saber que hoje à noite vocês podem se sentir seguros”, disse a diretora da escola de JonBenét a seus alunos logo após sua morte. “O que aconteceu geralmente não acontece em Boulder”.
“Os pais da JonBenét diriam a mesma coisa para ela também”, retrucou uma criança.
Alguns adultos tentaram tranquilizar seus filhos. Outros admitiram que isso era tudo o que eles poderiam tentar fazer e tranquilizaram a si mesmos. “Quando penso em JonBenét Ramsey”, escreveu James R. Gaines no Time, “não é uma questão de curiosidade lasciva; me pergunto no que acreditar…se isso é obra da maldade mais sombria imaginável ou um ato mais ou menos aleatório de malícia e ganância que saiu de controle. O mal nessa escala é impossível de compreender. Descobrir quem matou JonBenét Ramsey é descobrir em que mundo vivemos, onde estamos”.
Na sua aparição na CNN, até Patsy Ramsey descreveu a morte de JonBenét como não apenas uma perda pessoal, mas como parte de uma sensação geral de que os americanos haviam perdido algo maior, provavelmente de forma irrevogável.
“Sabe, a América acabou de ser ferida tão profundamente”, diz Patsy, “com as — esta — as coisas trágicas que têm acontecido. A moça que jogou o carro com seus filhos na água, e não sabemos o que aconteceu com O.J. Simpson — digo, a América está sofrendo porque perdemos a fé na família americana”.
“A moça que jogou o carro com seus filhos na água” era Susan Smith, uma mulher de 23 anos da Carolina do Sul que, em outubro de 1994, afogou seus filhos pequenos e depois alegou que um negro havia roubado seu carro. Quando a caça ao suspeito terminou e a culpa pela morte das crianças pulou de um homem negro para uma mulher branca, o julgamento de Susan Smith tornou-se uma das histórias criminais mais amplamente acompanhadas daquele ano.
Smith tornou-se o símbolo vivo de tudo o que uma mãe jamais deveria fazer com seus filhos, de tudo o que um ser humano simplesmente não poderia ser. Após ser considerada culpada, o Entertainment Tonight promoveu uma pesquisa de opinião por telefone na qual os telespectadores, por 50 centavos o voto, poderiam dizer se acreditavam que ela merecia morrer na cadeira elétrica. Ainda assim, apesar do quão “inimagináveis” seus crimes foram, Smith acabou com uma sentença à prisão perpétua. No fim da história, os espectadores puderam se tranquilizar de que o mal havia sido encontrado e derrotado, que a ordem havia sido restaurada.
Vinte anos após a morte de JonBenét Ramsey, o público americano permanece convencido de que as autoridades de Boulder fracassaram. Aqueles que assistiram ao desdobramento da investigação esperavam que, inevitavelmente, um suspeito fosse nomeado, levado a julgamento, considerado culpado e afastado da sociedade para sempre. Essa era a história à qual os americanos estavam acostumados, a história que parecia menos com algum tipo de entretenimento oferecido pelos tabloides do que com um direito constitucional.
No entanto, a investigação da morte de JonBenét Ramsey falhou em prover essa história. E, apesar dos recursos legais e financeiros dos Ramsey talvez terem evitado seu indiciamento, isso tampouco serve como prova da culpa deles. Se eles fossem menos astutos, não tivessem bons contatos e fossem menos ricos, os investigadores talvez tivessem uma margem maior para corroborar suas teorias com evidências inconclusivas e agir de acordo não com os fatos, mas com a indignação e o medo do público. E isso também poderia ter levado a uma sentença injusta. Havia um número suficiente de pessoas dispostas a acreditarem que qualquer resposta era melhor do que nenhuma.
Independentemente de Patsy ser ou não culpada de amar JonBenét de uma forma que a objetificava e a desumanizava, o público americano certamente o é.
Durante o frenesi da mídia que cercou o assassinato de JonBenét Ramsey, os americanos deram o melhor de si para inventar uma história que forçasse sua morte a fazer sentido, e deram a ela um papel como símbolo angelical de tudo o que as trevas tomarão de nós, se permitirmos. Uma sociedade não consegue ter certeza de suas habilidades em impor a ordem e em derrotar monstros se esses monstros não fizerem uma vítima de vez em quando.
Privado de um julgamento, privado de um veredicto e privado até mesmo de uma história coerente, o público americano não teve como transformar o horror de um infanticídio no começo de um conto de fadas. Por isso, o desespero por um fim para a história ainda persiste — um fim no qual JonBenét, a mais bela de todas, ainda está morta, mas todos os valores que ela simboliza estão novamente a salvo, já que o monstro maligno que os ameaçou foi abatido. A compreensão do caso que o público ainda procura, e o qual a mídia tenta desesperadamente oferecer com uma ofensiva de conteúdo relacionado ao aniversário do caso, é aquela na qual a história acaba, onde a ordem é restaurada e onde os americanos finalmente asseguraram “justiça para JonBenét”.
Hoje em dia, nos Estados Unidos, “justiça” pode significar quase qualquer coisa. Neste caso, não significa que JonBenét Ramsey irá voltar à vida, que ela irá crescer e vivenciar a infância que ela mal havia começado. Na verdade, significa que sua morte irá finalmente fazer parte de uma história que faça sentido e que dê ao público a sensação de conforto que só uma história assim consegue oferecer. Essa é a versão da justiça que o público tem procurado pelos últimos 20 anos: justiça não apenas para JonBenét Ramsey, mas para nós mesmos.
A obra de não-ficção de Sara Marshall apareceu nas publicações The Believer, The New Republic, The Best American Nonrequired Reading 2015 e The Week, da qual ela é colaboradora.
QUEM MATOU, JONBENÉT RAMSEY
3 CAPÍTULOS
EPISÓDIO 3, DISPONÍVEL EM OUTRO SITE.
LINK: http://dai.ly/x56ng22
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