Imagine um predador capaz de enxergar no escuro, hábil o suficiente para voar por entre as árvores de uma floresta densa, mudando de direção rapidamente e em total silêncio. Um predador capaz de capturar suas presas durante o vôo, em ataques fulminantes e certeiros. E capaz ainda de desaparecer no meio da mata como um fantasma, confundindo-se com as árvores da floresta. Um caçador tão eficiente que mesmo de olhos fechados consegue ver.
Esse predador fantástico existe: é o urutau, também chamado de mãe-dalua, uma das aves mais surpreendentes de nossa avifauna e ao mesmo tempo uma das menos conhecidas pelo homem. Até hoje foram identificadas cinco espécies de urutaus no Brasil. A mais comum é Nyctibius griseus. Ocorre desde a Costa Rica até a Argentina e é facilmente encontrada também nas cidades.
Podemos dizer que o urutau é bem diferente do que reconhecemos como aves. Se você acha que um filhote de coruja é feio, precisará rever esse conceito depois de conhecer o urutau. Mas se, de um lado, essa ave noturna não prima pela beleza, de outro reúne qualidades fantásticas pouco comuns em outras aves.
O nome urutau é de origem guarani, vem da junção de guyra (ave) + tau (fantasma). Quando alguém, por sorte, encontra uma dessas aves, percebe logo que o adjetivo fantasma não é exagero. Normalmente o urutau se camufla com perfeição na ponta de um galho, parecendo ser um prolongamento do mesmo. Um simples passar de olhos pelos galhos de uma árvore dificilmente localizará um urutau camuflado. Nossa percepção dessas aves, quando ocorre, deve-se ao fato de a vermos pousando ou decolando, ou ainda num simples bocejar. Se ela não se movimenta, torna-se ‘invisível’.
Assim o imaginário popular transformou e ainda transforma o urutau numa ave lendária. Ninguém discute que ele é, sem sombra de dúvidas, um mestre em disfarces. Essa capacidade de se camuflar não se deve apenas à plumagem, que varia do cinza ao marrom, e é cheia de pintas e manchas. Também a postura que adota faz parte da camuflagem. Embora eventualmente o urutau seja visto empoleirado como as outras aves, em geral procura a ponta de um galho quebrado ou seco e pousa ali com o cuidado de se esticar ao máximo, assumindo a forma do ramo, como se fosse sua extensão. Quando relaxa, o urutau chega a baixar um pouco a cabeça, mas ao menor sinal de perigo estica-se todo novamente, apontando o bico para o céu.
Desse modo, pouca gente repara nele, na natureza. É como se brincasse o tempo todo de estátua, a exemplo de algumas crianças. A diferença é que as crianças mantêm a pose por alguns minutos, enquanto o urutau fica imóvel por horas. Quando assume a postura perfeita de camuflagem parece uma ave soberba, de ‘queixo erguido’, como se sentisse orgulho da própria capacidade de se tornar invisível. E vão além os cuidados para que nada denuncie sua posição.
Durante o dia, o urutau permanece imóvel no mesmo poleiro e cuida para não deixar caírem as fezes no galho, o que poderia denunciar sua presença através do cheiro. Assim toda a sujeira é jogada para longe.
Outro destaque entre suas características mais marcantes são seus dois grandes olhos. Lembram os olhos das corujas e provavelmente têm excelente visão noturna, já que olhos extremamente grandes captam quantidades mínimas de luz. E permitem localizar e capturar mariposas, cupins, besouros e outros insetos, mesmo em total escuridão. À noite, o urutau procura áreas abertas, como clareiras e bordas da mata e fica empoleirado em ramos e mourões de cercas, mesmo os de concreto. Deste poleiro se lança à perseguição de insetos que passem ao seu alcance, capturando suas presas em pleno vôo.
Além disso, o urutau tem uma capacidade notável, única entre as aves. É o fato de conseguir enxergar com os olhos fechados. Tal habilidade foi descoberta e registrada pelo ornitólogo Helmut Sick, na década de 1950. Segundo ele, para que sua camuflagem seja perfeita, a ave precisa esconder os olhos grandes, que chamam muito a atenção durante o dia. Então os urutaus fecham os olhos durante a maior parte do dia, mantendo apenas uma ‘fresta’, duas incisões em meio às pálpebras, através das quais consegue vigiar os arredores. Essas pequenas fendas funcionam como um olho mágico, desses instalados nas portas das casas e apartamentos.
Vale dizer que a boca e o bico dessa ave também merecem destaque. Proporcionalmente ao tamanho do corpo, o urutau é uma das aves que têm o menor bico e a maior boca. Parece ter um bico de andorinha e a boca de um sapo. No caso da mãe-da-lua-gigante (Nyctibius grandis), que mede 54 centímetros, pesa cerca de 600 gramas e cujas asas alcançam um metro, de uma ponta a outra, o bico mede apenas 2 centímetros. Mas se a boca estiver totalmente aberta, é possível colocar dentro o punho cerrado de um homem.
Quando está imóvel e camuflado no seu galho, o urutau costuma abrir um pouco a boca. Talvez daí tenha nascido a crença popular de que o urutau fique de boca aberta, à espera de algum inseto enganado, que pouse no que seria uma armadilha. No entanto, isso é apenas mais uma lenda. Em realidade, a boca semi-aberta serve para o urutau regular sua temperatura, quando empoleirado ao sol. A ave ofega, assim descarregando o calor excessivo.
Quando chega a primavera e o tempo começa a esquentar, os urutaus são mais notados. Não que deixem seus disfarces. Mas se tornam mais ativos, pois é período de reprodução. Se você perguntar nas redações de jornais, rádios ou TVs, por essa época, verá que quase todas já receberam telefonemas do público, alegando ter encontrado uma ave rara ou querendo identificar uma ave noturna que nunca havia sido registrada antes. Normalmente isso ocorre de outubro em diante, quando os urutaus se deixam avistar com um pouco mais de facilidade. Se essas pessoas estivessem atentas em tempo integral, notariam que a ave sempre esteve por perto, mas tem um período em que esquece um pouco a invisibilidade para garantir a eternidade, através de sua descendência.
E a reprodução dessa ave é também curiosa. Primeiro porque não constrói ninho. Escolhe apenas uma cavidade num galho onde a fêmea põe apenas um ovo. Macho e fêmea então se encarregam de chocar. Provavelmente o macho durante o dia e a fêmea à noite, mas ainda não há confirmação científica sobre isso. O período de incubação leva 33 dias. O filhote nasce com uma macia plumagem branca. E parece já vir ao mundo sabendo montar seu próprio disfarce: fica imóvel no tronco ou em meio à plumagem do ventre da mãe, imitando a postura dos adultos. A plumagem mais clara faz com que pareça a ponta apodrecida de um galho, tomada por fungos. O filhote demonstra não ter pressa para abandonar o “ninho”. Permanece recebendo alimentação dos pais por mais 51 dias.
Ao todo a cria de um filhote de urutau soma 84 dias, ou seja, quase três meses. Um dos períodos mais longos entre a desova e o abandono do ninho pelo filhote dentre todas aves da América do Sul! Segundo Helmut Sick, um período tão longo de desenvolvimento comprova a eficiência da camuflagem. Se ficasse mais visível quando ainda não está pronto para deixar os pais, o filhote certamente seria predado.
Ouvir o canto do urutau na noite escura tem muitos significados dependendo de quem escuta. Já ouvi gente que acredita que é sinal de morte. Outros dizem ser um canto agourento. Para mim é um canto que lembra a calma de uma noite na mata, longe da correria das cidades. É um canto forte, marcante. Quatro notas que lembram os sons de instrumentos de sopro. Parece também um lamento.
Embora tenha ouvido esse canto várias vezes, nunca consegui observar um urutau cantando. Há relatos de que a ave, ao emitir o primeiro som, abaixa a cabeça e a balança, de um lado para o outro, a cada nota.
Seja como for, o conjunto das habilidades e características do urutau faz dele uma ave ímpar. Se a lua quase sempre faz parte de histórias mágicas do imaginário popular, não poderia ser diferente com a mãe-da-lua, uma ave intrigante e, por que não dizer, misteriosa. Dentre tantas lendas que existem do urutau, a do funcionário da fazenda na região do Araguaia traz uma verdade. Como outras espécies têm suas funções na manutenção da unidade da vida, o urutau pode ser mesmo considerado um protetor das árvores, uma vez que caça mariposas. O controle desses insetos significa uma redução na população de lagartas consumidoras de folhas.
URUTAUS DO BRASIL
Mãe-da-lua-gigante (Nyctibius grandis) – Chega a medir um metro de ponta a ponta das asas. Pesa até 600 gramas e atinge 54 cm de altura. Possui plumagem clara e por isso busca a copa alta de árvores de casca branca para pousar. De distribuição ampla, ocorre do México ao Sudeste brasileiro
Mãe-da-lua-parda (Nyctibius athereus) – Espécie um pouco menor do que N. grandis, mas mais leve, chegando a 450 gramas, no máximo. A plumagem é pardo-escura. Confia muito nos seus disfarces e chega a pousar em galhos baixos e relativamente expostos. Ocorre desde a Venezuela até o Paraguai
Urutau (Nyctibius griseus) – Espécie mais comum, relativamente pequena: 37 cm de altura, peso entre 159 e 187 gramas, com 85 cm entre as pontas das asas. Colorido variável, entre marrom e cinza. Distribui-se da Costa Rica ao Uruguai.
Urutau-de-asa-branca (Nyctibius leucopterus) – Distingue-se por um V de cor clara, no meio das costas. A espécie foi descrita em 1821 a partir de um exemplar encontrado em Vitória da Conquista, na Bahia, depois nunca mais foi vista no Brasil. Em 1993 sua presença foi registrada na Guiana.
Urutau-ferrugem (Nyctibius bracteatus) – A menor espécie de todas, com 23 cm. Plumagem cor de ferrugem, com manchas brancas destacadas. Vive nas matas da Amazônia e das Guianas.
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